domingo, 15 de março de 2009

Pablo Neruda - Memorial de Isla Negra



AQUI ESTOU


Limpo é o dia lavado pela areia

branca, e gelada no mar roda a espuma,

e nesta desmedida solidão

sustenta-me a luz do meu livre-arbítrio.


Mas este mundo não é o que eu quero.




SOLILÓQUIO NAS ONDAS


Sim, mas aqui estou sozinho.

Levanta-se

uma onda

que disse o seu nome, não compreendo,

murmura, arrasta o peso

de espuma e movimento

e se retira. A quem

perguntarei o que me disse?

A quem entre as ondas

poderei nomear?

E espero.


Próxima, de novo, está a claridade,

levantou-se na espuma

o doce número

e não soube nomeá-lo.

Assim caiu o sussurro:

deslizou-se para a boca da areia:

o tempo que destruiu todos os lábios

com a paciência

da sombra e com

o beijo alaranjado

do verão.

Fiquei sozinho

sem poder acudir ao que este mundo,

sem dúvida, me oferecia,

ouvindo

como se debulhava esta riqueza,

as misteriosas uvas

de sal, e dum amor desconhecido

e ficava no dia degradado

só um rumor

cada vez mais distante

até que tudo o que eu poderia ser

converteu-se em silêncio.




ARTE MAGNÉTICA


De tanto amar e andar saem os meus livros,

e se eles não têm beijos ou regiões

e se não têm um homem de mãos plenas,

e se não têm mulher em cada gota,

fome, desejo, cólera, caminhos,

não servem para escudo nem pra sino:

estão sem olhos e não poderão abri-los,

terão a boca morta do preceito.


Amei as genitais enramadas e entre

o sangue e o amor escavei os meus versos,

em terra dura estabeleci a rosa

entre o fogo e o sereno disputada.


Por isso pude caminhar cantando.



Neruda, Pablo. Memorial de Isla Negra; tradução, notas e apresentação de José EduardoDegrazia. Porto Alegre: L&PM, 2007.



sábado, 14 de março de 2009

O GATO



Uma camuflagem quase perfeita: Pretinho tentando se esconder na grama preta.

Merece até poema do Quintana.


O GATO


O gato chega à porta do quarto onde escrevo.
Entrepara...hesita...avança...
Fita-me.
Fitamo-nos.
Olhos nos olhos...
Quase com terror!
Como duas criaturas incomunicáveis e solitárias
Que fossem feitas cada uma por um Deus diferente.

Mario Quintana