AQUI ESTOU
Limpo é o dia lavado pela areia
branca, e gelada no mar roda a espuma,
e nesta desmedida solidão
sustenta-me a luz do meu livre-arbítrio.
Mas este mundo não é o que eu quero.
SOLILÓQUIO NAS ONDAS
Sim, mas aqui estou sozinho.
Levanta-se
uma onda
que disse o seu nome, não compreendo,
murmura, arrasta o peso
de espuma e movimento
e se retira. A quem
perguntarei o que me disse?
A quem entre as ondas
poderei nomear?
E espero.
Próxima, de novo, está a claridade,
levantou-se na espuma
o doce número
e não soube nomeá-lo.
Assim caiu o sussurro:
deslizou-se para a boca da areia:
o tempo que destruiu todos os lábios
com a paciência
da sombra e com
o beijo alaranjado
do verão.
Fiquei sozinho
sem poder acudir ao que este mundo,
sem dúvida, me oferecia,
ouvindo
como se debulhava esta riqueza,
as misteriosas uvas
de sal, e dum amor desconhecido
e ficava no dia degradado
só um rumor
cada vez mais distante
até que tudo o que eu poderia ser
converteu-se em silêncio.
ARTE MAGNÉTICA
De tanto amar e andar saem os meus livros,
e se eles não têm beijos ou regiões
e se não têm um homem de mãos plenas,
e se não têm mulher em cada gota,
fome, desejo, cólera, caminhos,
não servem para escudo nem pra sino:
estão sem olhos e não poderão abri-los,
terão a boca morta do preceito.
Amei as genitais enramadas e entre
o sangue e o amor escavei os meus versos,
em terra dura estabeleci a rosa
entre o fogo e o sereno disputada.
Por isso pude caminhar cantando.
Neruda, Pablo. Memorial de Isla Negra; tradução, notas e apresentação de José EduardoDegrazia. Porto Alegre: L&PM, 2007.